Olivetti lettera 32 - A Sobrevivente do Kaos
Uma tarde esturricante na capital mais austral do Brasil. O ventilador joga um ar quente, enquanto bato freneticamente nas Teclas da velha Olivetti lettera 32 - uma sobrevivente das guerras que travei como soldado da escrita e alcoólatra. O velho rádio AM espalha música erudita - sintonizado na estação da universidade. Felinos saem e entram pela janela do sótão alugado. Uma espelunca simpática, empoeirada, num bairro esquecido, onde árvores centenárias jogam seus galhos cansados em todas as direções. Neste lugar calmo, bucólico e parado no tempo - consigo esquecer os fracassos e jogar palavras no papel em branco. Apesar de ter nascido nesta cidade me sinto um estranho no meio do ar reacionário e discriminatório que domina a parte chamada nobre, que recebe todos os investimento de infra-estrutura, gerado pelo suado imposto das classes menos favorecidas.
Abro uma lata de biscoitos finos e pego minha identidade e o restante do dinheiro que sobrou do pagamento do aluguel. Coloco minha camisa puída com estigmas do tempo e a calça de brim surrada. Cansei de escrever e ler filosofia - vou tomar cerveja... As paredes descascadas e sujas simbolizam a degradação dos habitués do bar periférico. Peço uma cerveja ao bodegueiro. Entre goles - presto atenção nos frequentadores - quem sabe não surja um personagem para um futuro conto. O assunto entre os frequentadores não poderia ser outro - futebol. A alienação está impregnada na cabeça da população sulina - Futebol e o Mito do Gaúcho e a Infame Revolução Farroupilha. Resolvi não falar nem escrever mais sobre isso, não que tenha medo de ameaças que recebi, mas é inútil. Não tenho como competir com os meios de comunicações que vomitam a voz do poder e alienação 24 Horas por dia e defendem políticos que abraçam sua Ideologia. Fazem da população um rebanho imitador e servil que se alimenta dos clichés produzidos pelas corporações econômicas do sul. A refrigeração não é satisfatória, oferta uma cerveja morna. Resolvi pedir uma garrafa de vodka e gelo no porta-cerveja.
Paguei o bodegueiro e sai. Olho uma figueira encravada no centro da praça. Sentei em um banco e discretamente comecei a bebericar a vodkca com gelo. Alguns transeuntes olham com ar de reprovação. Estava no centro de uma diminuta comunidade - todos se conheciam e sabiam sobre a vida de todos. Olhavam-me como uma fruta podre no cesto de maçãs saudáveis. Já tinha sido interpelado varias vezes pela polícia comunitária, apesar de ter só alguns meses de domicílio na localidade. Todas vezes perguntavam:
- Escrever é Profissão?
- Escrever é Profissão?
- Bem... Sei que não é ilegal. E me pagam para fazer isso.
Depois de algum tempo substituíram a pergunta por um conselho impositivo, agora dizem:
- Não saia da linha... Estamos de olho em você...
De alguma forma a Comunidade me absorveu. Usavam-me como um paradigma negativo. Certamente, diziam para seus filhos: "Está vendo aquele vadio magérrimo que passa o dia inteiro lendo, escrevendo e bebendo. Nunca fale com ele, um dia ainda vai morrer atropelado por estar bêbado". De certa forma tinha orgulho da má fama, a reputação - apesar de negativa, trazia respeito e distância do rebanho servil. Também dava inspiração para preencher o papel em branco de prontidão na Lettera 32. Na realidade, estava satisfeito na pequena localidade que destoava da metrópole. Sentia-me um libertário bêbado, uma usina de escrever que gerava e captava matéria-prima. Já podia ler minha futura biografia, post-mortem, neste lapso de tempo singelo:
"O mais maldito de todos os escritores da metrópole gaúcha passou alguns anos escondido numa pequena comunidade de Porto Alegre - perdida no tempo. Lá escreveu alguns capítulos de sua obra, entre bebedeiras incomensuráveis e o idílio bucólico da mata atlântica. O povoado apesar de pacato e provinciano, de um certo modo - o acolheu. Com efeito, houve uma especie de simbiose, os habitantes toleravam seus porres, loucuras e solidão, pois tinham a pré-monição que no futuro ele teria sucesso e seus livros certamente iriam se referir a aquele pedaço de terra desengrenado da cronologia do progresso."