domingo, 27 de abril de 2014

A Orelha de Cristiano, o Luso. Van Gogh Surfista.




A Orelha de Cristiano, o Luso.
Van Gogh Surfista.





Caminhava pelas falésias urbanas erodidas pela ação humana deletéria, na realidade, um barranco íngreme artificialmente decorado com grama e plantas exóticas. Observava que no sopé havia empresas de mídia, com seus letreiros vanguardistas, anunciando as maravilhas de uma atmosfera artificial, que só existiam nas telas coloridas e tecnológicas do marketing. Varias escadas em forma de caracol, concreto e aço, davam acesso a comunicação entre a calçada em que meus pés pisavam e o terreno onde estavam estabelecidas as hipermídias. Em uma das escadas notei uma menina e uma senhora com idade avançada. Subiam em direção a calçada. Para minha surpresa, as reconheci. Tratava-se da mãe do meu ex melhor amigo e sua neta.  D. Josefina também me percebeu:

- Oi, meu filho, como vai?

Logo começamos um colóquio. Lembramos de seu filho falecido e de nossa amizade. Dona Josefina, sempre segurando a pequena mão da neta, não conseguiu deter as lágrimas. Dei um abraço para consolar sua dor revivida, mas fui tomado de surpresa quando Dona J. retirou de sua bolsa um vidro e colocou em minhas mãos. Não era um simples vidro, mas sim um recipiente cheio de formol com uma orelha adornada com um piercing. Não tive dificuldade, mesmo impactado pelo inusitado, para distinguir que se tratava da orelha de Cristiano, o luso, meu ex melhor amigo. Consegui conter a repugnação  da cena vangoniana-stephenkinguiana. Depois Dona J. apertou minha mão e com uma voz chorosa e incisiva fez um pedido:

- Meu filho, você era o melhor amigo de Cristiano, o luso. Peço-lhe um grande favor... Não negue para esta velha senhora que perdeu uma parte de sua existência. Ainda bem que você conseguiu sair do caminho da drogadição, infelizmente meu filho pereceu nesta senda...

"Varias vezes tentei demover C., o Luso, da vida barra pesada, mas não tive sucesso. Antes do seu falecimento o encontrei num bar tomando absinto, lendo a poesia dos malditos franceses e cheirando neve" - pensei, enquanto ouvia a velha senhora. Seus olhos dilatados  mostravam o amargor, o sofrimento pela perda. Sua netinha parecia uma indiozinha perdida na selva humana. Parecia não estar entendendo o que acontecia.

- Dona J., como a senhora conseguiu esta orelha...

D. Josefina me interrompeu. Segurou novamente minhas mãos com o rosto suplicante e continuou:

- Meu filho, não me questione, apenas ouça. Está completando cinco anos desde que Cristiano se Foi. Vou resgatar sua memória, prestar-lhe uma homenagem. Estou vindo da Mídia-Memory, uma filmadora especializada em produzir  vídeos sobre a vida de pessoas que alguém quer homenagear. Pedi que fizessem um roteiro sobre a breve existência de Cristiano. Aprovei e achei lindo a forma que desenvolveram a história de C., porém dependo de você para completar este culto.

- O que posso fazer D. Josefina?

- É simples meu filho. Leve este vidro com a orelha de C. até o mar, onde vocês costumavam surfar. Lembro de vocês dois arrumando os equipamentos de surf com entusiasmo. A expressão de felicidade em seus rostos. Peço que preste esta cerimonia. Coloque no mar a orelha de Cristiano, seria como resgatar  seu tempo saudável, de felicidade. Não estou com insanidade alguma, mas um médium  ouviu a  voz de C. e ele fez este pedido...

Não podia dizer não para a velha senhora, afinal Cristiano, o luso, tinha sido meu melhor amigo. Quando concordei com a missão, a fisionomia de Dona J. irradiou satisfação. Dei mais um abraço, passei a mão na cabecinha loura da netinha e despedi-me... 






Olhei para o outro lado da rua, com a orelha dentro do vidro e o vidro dentro da sacola. Vi um simpático bar com mesas na calçada. Pedi uma cerveja para o garçom. Comecei a saborear a cevada. No segundo copo, ouvi um assovio e meu nome vindo da parte interna do bar. Eram Cireneu e Calcides. Convenceram-me a sentar junto a mesa em que bebiam whisky e cerveja.  Eles já estavam altos. Misturavam goles do malte escocês com profundas  absorvidas de cerveja. Calcides e Cireneu eram amigos dos velhos tempos, também conheciam C., o Luso, mais do que conheciam, ainda estavam na velha estrada de chapação. Deixei-me envolver pela atmosfera criada, logo comecei a compartilhar o whisky. Quando você concede um dedo o corpo está comprometido. Fiquei no nível alcoólico de C. & C. e contei o encontro que tive com D. J. Do bar empreendemos uma viagem de taxi até a casa de Calcides. Concordamos fazer um jantar e uma homenagem póstuma ao nosso amigo Cristiano, o Luso. 




Calcides abriu a porta do seu moderno refrigerador e sacou long-necks. Ele foi quem propôs fazer uma janta em homenagem a C., o luso. Com o orgulho potencializado pelo álcool, mostrou um diploma de chefe de cozinha. Rimos muito, aliás eram gargalhadas sem controle. Deixamos ele ir até a cozinha e preparar o "Prato In Memoriam de C., o Luso". Fiquei com Cireneu atirado no sofá ouvindo The Beach Boys. Calcides entrou freneticamente na sala e colocou algumas carreiras de neve em cima de uma mesa de vidro. Consumimos avidamente. E assim se sucedeu durante algum tempo.
Calcides voltou para cozinha uivando como um coiote solitário. Quando retornou trouxe uma especie de fogareiro e uma frigideira e uma garrafa de conhaque jerez de la frontera. Realmente, Calcides tinha habilidades gastronômicas, apesar  das pesadas doses de álcool e neve. Começou a flambar o acepipe dentro da frigideira. Começamos a devorar o prato especial,  ao som da quinta de Beethoven. Terminamos o banquete. Calcides desligou o som e disse que faria um discurso em homenagem a Cristiano, subindo na mesa de vidro, entoou a homenagem:



Excelentíssimos Senhores:

Não estará ele entre nós? Não ouvirá o meu chamado? Tão viva é sua lembrança. Tenho a sensação de vê-lo, de senti-lo dentro de nós. Não acredito que ele se foi, pois ele está presente em nossa memória. Levanto esta long neck em sua homenagem. Digo estas palavras que li no epitáfio de Bob Marley, que reflete a vida de Cristiano:


"Não viva para que a sua presença seja notada,
mas para que a sua falta seja sentida..."


Enquanto esteve presente entre nós foi um cometa, mas hoje sabemos que é uma estrela de  primeira grandeza. Senhores, beberemos mais um gole, tomaremos mais varias garrafas... Beberemos todos os estoques da cidade em homenagem a Cristiano, o Luso... Nada será suficiente para lustrar sua memoria... Vinho, whiski, vodka, absinto e pó que ao pó voltarás... Senhores, encerro este longo discurso em memória a C., o Luso, inspirando-me no dogma da Transubstanciação da Igreja católica, do discurso do pão e do vinho de Jesus Cristo. Prestem atenção senhores nas minhas últimas palavras:

O Acepipe da  orelha que nós comemos é carne de Cristiano para a salvação de nossa existência, para que ele esteja sempre conosco...
O conhaque jerez de la frontera com o qual flambei a orelha de Cristiano será nosso sangue para que ele seja eterno em nossas vidas...

E encerro esta cerimônia com o Réquiem de Mozart....


 






domingo, 20 de abril de 2014

Efeito Casimir




Efeito Casimir





Depois de um longo tempo de convalescença - abri a janela, deixei as ondas de fótons inundarem meu espaço físico restrito. Consegui emergir da virtualidade dos meus pensamentos. Agora era matéria visível. O corpo combalido pela alcoolemia reanima-se, o conjunto de átomos que formavam os membros obedeciam a corrente elétrica vindo do centro ejaculador de ordens biológicas. O olhar de varredura se deparou com copos & livros de nietzsche espalhados pelas trincheiras do quarto revivido. Botelhas de vários gêneros tombadas adquiriam vitalidade aparente. Precisava colocar o exercito desordenado em condições. 






Nada melhor que um copo de whisky para saudar a primavera, não a do calendário, medida pela movimento de translação do planeta, mas sim um estado orgânico que reflete no pensamento. As falanges enferrujadas estão aptas para concluir trabalhos escriturais que vem com o fluxo da consciência. A bebida alcoólica penetra pelo sistema gástrico & logo atinge o córtex. A poesia está escrita com tinta invisível por toda a natureza pura - que não sofreu intervenção do homem.   Coloco as quatros estações de Antonio Vivaldi, facilitada pelo Youtube. Ouço sinais de vidas entrarem pela janela, mas não posso ter mais contatos com este universo artificial. Os pensamentos se aprofundaram muito no período de pré-morte. A incompreensão permeia toda a existência, sou um gerador de confusões e mal-entendidos. Estou sempre em fuga alucinada  pelos escaninhos do que  Heidegger chama de Ser-Aí-No-Mundo (Dasein). O álcool me põe em movimento, só minhas sub-partículas mais intimas sabem do que estou falando...






Não sei contar quantas vezes ouvi:

- Escolha... O álcool ou a vida....

Nesta circularidade de abstemia & vida etílica vou construindo a minha obra. Primaveras e outonos se alternam. Cordeiros & lobos. 
Tropeços, quedas, sangue em todas regiões do corpo. Erguimento, caminhar, respirar fundo e navegar no mundo irreal dos meus pensamentos. As minhas palavras tem uma profundidade semântica que escapa da capacidade de entendimento humano. Não consigo achar sentido na existência. Os felinos são as únicas visitas. São elegantes e preenchem as lacunas do pensar e escrever. Uma animação tímida começa a percorrer o sangue gélido. Em breve um carregamento de álcool se fará presente. Há esperança... 




A última cartada está em stand by. A longa praia no extremo sul da America em breve será o refugio. O corpo desafiará o ambiente inóspito. Os pensamentos disputarão com o vento polar a sobrevivência. Frio extremo, deserto humano, vasta imensidão de oceano que os olhos são insuficientes para ver. A vida difícil, sofrida no ermo será a última solução. A natureza pura e sua cruel pureza terá que me dar élan, impulso, arrebatamento de viver.   Well, por enquanto, vou esperar o carregamento da esperança. Na noite estarei brindando secretamente com os que foram. Minha melhor amiga se foi hoje. A notícia chegou inesperadamente. A estupidez do transito, do homem, a irracionalidade violenta e infinita que habita o corpo de cada ser deste planeta... Limpem as taças, espoquem as rolhas, encham os copos - preciso transcender...



quarta-feira, 2 de abril de 2014

IMEXA - A Poetisa Que Abrigava Dr Jekyll & Mr Hyde Em Sua Alma


IMEXA
Poetisa Que Abrigava Dr Jekyll & Mr Hyde Em Sua Alma


Toda vez que o sapato furava, partia ao meio - literalmente - encerrava-se um ciclo existencial. Depois da queimada irracional de uma fase, advinha outra -  de racionalidade fria, metódica - porém, no abrigo das letras revoltas dos poetas num oceano profundo de insanidade. No refúgio, no intervalo entre a circularidade das fases - a mente era invadida por uma horda de escritores malditos. Sempre estavam presentes - "Les poètes maudits" - Verlaine, Rimbaud, Baudelaire, Mallarmé, etc... A existência de Imexa seguia o fluxo de alternâncias entre a veneta e a sobriedade. A intersecção  entre a dialéctica, podemos até denominar síntese, servia para a poetisa elaborar um balanço escriturado por rimas e verves doidivanas. Seu Sapato de salto alto era o termômetro que indicava o fim de um ciclo. Às vezes, a quebra do salto indicava o fim da fase irracional, mas por outro lado, o aprofundamento no estouvamento, que  só era interrompido diante um furo na sola fashion, o contato da palma do pé com o chão cru da dura realidade. 


Os intervalos eram uma aceleração para fase irracional -  ou a desaceleração para a Bonança. As escrituras poéticas sofriam a influencia do álcool, a degradação do corpo ou uma paixão que não aceitava limites. Imexa com seus cabelos negros, em época de racionalidade, radiava de sua pele morena todos os quebrantos possíveis. Seus olhos Sunshine inspiravam uma sensação de luminosidade, de zen budismo e uma doce empatia das calmarias. O sapato de salto intacto era índice do conjunto de predicados que iluminavam uma paz inefável - que emanava de sua áurea. Sua voz era serena, suas palavras eram simétricas, ritmadas e edulcoradas como a ambrosia que Hebe serve no Olimpo aos deuses.




Na semana passada, Imexa andava quase descalça, seus pés encostavam nas lajes frias do basalto outonal. Sua graça em tempos lógicas era uma mistura das deusas gregas: Atenas e Afrodite. Conseguia harmonizar a beleza e sexualidade (Sex Appeal) com o conhecimento. No entanto, se encontrava em polo oposto, seus cabelos de medusa davam a sua face um beleza insana. Seus dedos e neurônios em hábeis dígitos e fantásticos sinapses preenchiam a tela  do iPhone com poesias libertarias - emergidas no fluxo da consciência e submergidas no absinto, que a fazia naufragar no Café Rimbaud Express. Sua mesa preferida ficava embaixo da árvore exótica, que nem os garções - ou habitues, sabiam especificar seu nome e origem. Seus livros, iPhone e copos da verde bebida dos poetas franceses do século XVIII, iniciavam a ocupação do campo de batalhas etílicas-culturais ao entardecer. Uma luz verde intensa  do solo - ganhava a copa do exótico vegetal. Imexa antes de iniciar o ritual absíntico, bebia veloz e furiosamente duas taças de tequilas, sugando o suco de limão e beijando o sal com os lábios injuriados de avidez poética. Sua alma se retorcia - sua verve ácida expulsa Dr. Jekill. Incorporado Mr Hide, absorve o absinto vorazmente. Imexa inicia a frenética digitação no seu aparelho do genial finado Steve Jobs, a maçã de Isaac Newton. Seus cabelos de medusa se agitam, seus pensamentos se absorvem e jactam-se das sombrias zonas de criatividade do córtex, seus olhos reviram-se num êxtase luciferiano. Os serviçais, que trazem e levam copos de absinto, juram sentir cheiro de enxofre e murmúrios sibilinos do além. O estado de coisas se sucedem por semanas, por meses, até o momento que seus pés nus encostam no chão invernal, no gelo das primeiras geadas sulinas. Sua alma vai perdendo o fogo do Hades. Cerberus abre uma exceção e a conduz ao barco de caronte que a leva novamente ao mundo da Luz. Ela será uma Perséfone, terá que retornar ao Hades, pois inocentemente provou o fruto maldito da poesia francesa.