terça-feira, 18 de novembro de 2014

Paralipomena - Underground, Escrever, Write...



 Paralipomena

Underground, Escrever, Write... 





Escrever é como xadrez, você apreende alguns movimentos e já pode jogar. Não precisa de "inteligência", não precisa ganhar o jogo - apenas jogar, apenas escrever.... Porém, para jogar letra no papel, precisa-se das entranhas, jogar os fluidos glandulares no texto, nas entrelinhas. É preciso o arrepio da beira do abismo, a depressão da mais profunda fossa oceânica, o aroma das pétalas, o odor tenebroso das carcaças em adiantado estado de putrefação. Satã será vossa companhia na solidão escritural. Escrever só é possível nos infernos pessoais, no érebo, por baixo da terra, numa cova rasa, na singularidade de um black hole. Astronautas não escrevem quando estão no espaço. Emitem ondas que viajam pelo vácuo de sentido com suas vozes codificadas.  A matéria-prima do escrever só pode ser ceifada numa selva psicológica de desajustados, colhida nos trigais de Van gogh, na loucura de William Blake, na dantesca sociedade humana. Se você quiser manter seu figado intacto, livre de cirrose,  de hepatites, de tumores destrutivos, apenas, fique na superfície, escreva para os jornais, para a big media, para as vitrines dos shoppings. Um movimento errado no xadrez você perde o jogo, um erro de sintaxe pode gerar um estilo. Um defeito no escrever pode, como um grão de areia na ostra, virar uma perola. Não se preocupe com a gramática, pois quem escreve conforme as leis é apenas um alienado que tolhe o ser que se manifesta na linguagem-livre-fluida. O escrever precisa de liberdade, de álcool, de loucuras e rompimento com status quo. Transgredir deve ser uma constante. A morte será uma conselheira valiosa. O escritor deve  usar seu corpo no submundo, no Underground, nos excessos tóxicos. Deve fazer como Aldo Huxley, na hora da morte, aplicar 100 microgramas de LSD, via intramuscular. Para aprofundar seu texto, faça como Hölderlin, fique décadas trancafiado na torre, às margens do rio Neckar, escrevendo poemas. Escrever é ser expulso de Harvard, promover uma experiência psicotrópica como Timothy Leary. Escrever é imaginar o fim do mundo, voltar no tempo na hora do big-bang. Derramar letras no papel é fazer como Lima Barreto, colocar o figado em exposição para ser derretido pelo cinismo da sociedade. Escrever é urinar nos túmulos dos poderosos, jogar fezes na coroa da rainha.... 







sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Literatura Hemácia ou Hitchcock Radical... Nemesis Avícola




Literatura Hemácia

ou

Hitchcock Radical...






Pegou a antiga caneta de pena, molhou no tinteiro repleto de sangue de pássaros. A tinta de glóbulos vermelhos de aves era conseguido com a captura, principalmente pombos, por meio de arapucas espalhadas no entorno de sua casa. O contista esdrúxulo dizia:

-Um punhado de milho em troca da liberdade e da vida. Pássaros tolos. Criaturas toscas. Não aproveitam o dom da evolução, que a natureza lhe proporcionou. O céu azul sempre a disposição e eles preferem cair nas minhas arapucas....

O literato sanguíneo compunha letras que formavam fonemas, que formavam frases, que formavam períodos, que formavam contos a custa da vida de pássaros.



Dia após dia, invariavelmente, armava arapucas, capturava pombos, extraia o sangue das avezinhas e armazenava em recipientes hermeticamente lacrados, colocando no refrigerador junto com o estoque de cerveja. Sua escrita era recheada de galamatias, inspiração escolástica e aporias. Não importava se fosse considerado um anti-ecológico escrevinhador. Seus contos-sanguíneos absurdos eram a leitmotiv, a razão da sua existência. Na sua visão de mundo, na sua existência, não havia espaço a preencher, todas as lacunas tinham sido ocupadas por textos bizarros e surreais. O contista de tinta hemácia colocava seus contos em latas de cervejas, lacrava e as levava para um lago localizado no cume de um morro limítrofe a sua habitação. A dificuldade em enterrar seus escritos na beira do lago eram as sanguessugas e planárias. Ao entrar nas águas sua saúde corria perigo, mas a obsessão de escrever e enterrar suas capsulas de literatura venciam todos obstáculos e ameaças.  



Antes do epílogo, convém lembrar que toda a literatura insólita, kafkiana, foge a compreensão racional, contraria os fundamentos da ciência. As vezes, terminam em tragédias....


O sol joga suas ondas diáfanas que colorem a natureza outonal. O córrego de águas límpidas em fluxo, fazem moinhos nas pedras que rompem a superfície aquática. O contista de tintas hemácias respira fundo. Sua mochila verde musgo transporta uma nova carga de drágeas de literatura. Vai pisando em calhaus na íngreme Via Ápia de areia. Uma sombra paira sobre a cabeça. O literato olha em direção ao céu e enxerga uma pequena nuvens de pássaros. A princípio imagina tratar-se de migração de pássaros em busca de terras mais quentes, fugindo do inverno que se aproxima. Depois de alguns minutos, o céu ficou obnubilado. Por momentos, pensou se tratar de algum eclipse não previsto, mas antes de colocar os olhos no cerúleo sentiu algumas bicadas na cabeça. A Via Ápia se tornou Via Crúcis. As aves atacavam com seus bicos enfurecidos, lancinavam a carne no corpo do escritor. Sucediam-se bicos aquilíneos, frutíferos, coletores de néctar, insetívoros, carnívoros, granívoros. Garras, unhas e esporões completavam o martírio, a execução. O corpo logo caiu no chão, o sangue o cobria totalmente. Em seguida a carne, as glândulas, as entranhas ficaram expostas. Foram devoradas. Sobrou a carne menos nobre, alguns músculos. Finalmente, os urubus completaram o trabalho. Ficou só o ossário do contista na estrada desabitada, erma. Depois de alguns dias, um montanhês subindo o íngreme caminho, encontrou a carcaça. Comunicada as autoridades competentes, os ossos foram encaminhados para o laboratório  da polícia cientifica para identificação. Antes de examinar o DNA, o médico-legista preencheu o item de observações:

Obs. Avançado estado de osteoporose.