sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Literatura Hemácia ou Hitchcock Radical... Nemesis Avícola




Literatura Hemácia

ou

Hitchcock Radical...






Pegou a antiga caneta de pena, molhou no tinteiro repleto de sangue de pássaros. A tinta de glóbulos vermelhos de aves era conseguido com a captura, principalmente pombos, por meio de arapucas espalhadas no entorno de sua casa. O contista esdrúxulo dizia:

-Um punhado de milho em troca da liberdade e da vida. Pássaros tolos. Criaturas toscas. Não aproveitam o dom da evolução, que a natureza lhe proporcionou. O céu azul sempre a disposição e eles preferem cair nas minhas arapucas....

O literato sanguíneo compunha letras que formavam fonemas, que formavam frases, que formavam períodos, que formavam contos a custa da vida de pássaros.



Dia após dia, invariavelmente, armava arapucas, capturava pombos, extraia o sangue das avezinhas e armazenava em recipientes hermeticamente lacrados, colocando no refrigerador junto com o estoque de cerveja. Sua escrita era recheada de galamatias, inspiração escolástica e aporias. Não importava se fosse considerado um anti-ecológico escrevinhador. Seus contos-sanguíneos absurdos eram a leitmotiv, a razão da sua existência. Na sua visão de mundo, na sua existência, não havia espaço a preencher, todas as lacunas tinham sido ocupadas por textos bizarros e surreais. O contista de tinta hemácia colocava seus contos em latas de cervejas, lacrava e as levava para um lago localizado no cume de um morro limítrofe a sua habitação. A dificuldade em enterrar seus escritos na beira do lago eram as sanguessugas e planárias. Ao entrar nas águas sua saúde corria perigo, mas a obsessão de escrever e enterrar suas capsulas de literatura venciam todos obstáculos e ameaças.  



Antes do epílogo, convém lembrar que toda a literatura insólita, kafkiana, foge a compreensão racional, contraria os fundamentos da ciência. As vezes, terminam em tragédias....


O sol joga suas ondas diáfanas que colorem a natureza outonal. O córrego de águas límpidas em fluxo, fazem moinhos nas pedras que rompem a superfície aquática. O contista de tintas hemácias respira fundo. Sua mochila verde musgo transporta uma nova carga de drágeas de literatura. Vai pisando em calhaus na íngreme Via Ápia de areia. Uma sombra paira sobre a cabeça. O literato olha em direção ao céu e enxerga uma pequena nuvens de pássaros. A princípio imagina tratar-se de migração de pássaros em busca de terras mais quentes, fugindo do inverno que se aproxima. Depois de alguns minutos, o céu ficou obnubilado. Por momentos, pensou se tratar de algum eclipse não previsto, mas antes de colocar os olhos no cerúleo sentiu algumas bicadas na cabeça. A Via Ápia se tornou Via Crúcis. As aves atacavam com seus bicos enfurecidos, lancinavam a carne no corpo do escritor. Sucediam-se bicos aquilíneos, frutíferos, coletores de néctar, insetívoros, carnívoros, granívoros. Garras, unhas e esporões completavam o martírio, a execução. O corpo logo caiu no chão, o sangue o cobria totalmente. Em seguida a carne, as glândulas, as entranhas ficaram expostas. Foram devoradas. Sobrou a carne menos nobre, alguns músculos. Finalmente, os urubus completaram o trabalho. Ficou só o ossário do contista na estrada desabitada, erma. Depois de alguns dias, um montanhês subindo o íngreme caminho, encontrou a carcaça. Comunicada as autoridades competentes, os ossos foram encaminhados para o laboratório  da polícia cientifica para identificação. Antes de examinar o DNA, o médico-legista preencheu o item de observações:

Obs. Avançado estado de osteoporose.






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