HALLOWEEN
O Ermitão Mutante
O Asceta caminhava na estrada de chão batido, margeando a floresta atlântica. Como de costume, diariamente, a percorria juntando gravetos e lenhas. Colhia ervas medicinais e psicoativas, frutos silvestres, que compunham parte de sua alimentação frugal. Quando estava em casa, uma cabana simples, construída com pedras do campo, madeira silvícola e algum material descartado pelos habitantes da área urbana, preparava sua alimentação e medicamentos naturais. A noite macerava e fervia as ervas alucinógenas, ouvindo o piar das corujas e de outros pássaros noctívagos. Numa noite de breu total, devido a lua nova, o ermitão sentiu um estranho êxtase em seu corpo esturricado, consequência de uma dieta de candidato a santo vegetariano e filosofo mistico, que procurava transcender a limitação da condição humana. Uma gélida sensação percorreu sua espinha. Seus olhos esbugalhados e sanguíneos expressavam a condição singular do solitário possuído. Talvez, endemoniado. O crepitar do fogo na lenha se avivou de tal maneira, que a chama atingiu a barba sebosa do asceta. O corpo corcunda, como um quasímodo, num passe mágica - se tornou ereto. Os lábios secos e selados durante anos, pela não vibração de suas cordas vocálicas, resultado dos raciocínios sem fim, beirando ao infinito, emitiram gritos originados do lado obscuro da existência, do sobrenatural. Erguido com uma postura reta e a barba em chamas, jogou o corpo contra a frágil porta do barraco. Correu pelo campo, esfregou o rosto na grama, conseguiu apagar as chamas, que destruíram seu monumento grisalho em homenagem a solidão. Continuou correndo, não parou mais. Saiu do campo e atravessou floresta gélida, que na escuridão plena dava ares sinistros. Sua terrível transformação chegou a pequena cidade. As lâmpadas de mercúrio, penduradas nos postes de eucaliptos, quebravam a escuridão. O penitente, transformado num hábil homo apetite's, tinha a nova configuração revelada por bombardeios de fótons.
Em frente a uma mistura de bolicho e mini-mercado, sentiu suas papilas degustativas traçarem seu próximo passo. Quebrou os vidros da vitrina rústica e penetrou dentro da venda. Totalmente transtornado o vegan-asceta soltava grunhidos primitivos. Derrubou um jirau de linguiças e morcilhas rubescentes, que odorizavam sanguineamente. Seus dentes acostumados com seiva e clorofila, mordiam, estraçalhavam a carne e o sangue. Devorou grande parte dos embutidos - com animalesca voracidade. Depois a atenção se voltou para o balcão frigorífico com carnes de vacunas. Prostrado, de quatro, estraçalhou o produto animal. O vermelho carnil líquido escorria pelos lábios selvagens. O terrível espetáculo carnívoro se dava em meio ao sono inocente do povoado de imigrantes, que na sua profunda sonolência de gente simples, que recuperava as energias para a labuta na roça do amanhã. Depois do canibalismo paralelo, se ergueu bípede, erecto. As roupas puídas foram ragadas com fúria. A configuração sinistra se precipitou pelas pacatas ruas. Com as genitálias balançando, no ar tépido do verão, que se anunciava, ambulava pela avenida principal. Como um sátiro, suspirando lascívias e captando feromônios de virgens, parou silente diante um sobrado de pedra e madeira, jardim florido de amores-perfeitos, dálias e rosas. Um novo êxtase perpassou o corpo libidinoso. Uma eletricidade sexual incontrolável foi despertada, causada por hormônios que emanavam do interior da casa. Jogou toda a energia carnal na janela bucólica. Olhou para cama onde uma jovem de pele láctea e olhos negros repousava sua castidade. Possuído por deuses pagãos, jogou seu corpo por cima da jovem. A família se acordou com os gritos juvenis desesperados, que ecoavam por dentro da casa - com um teor de terror. Os pais e os irmão juntando todas as forças não conseguiram retirar o priapo de cima do ente imberbe. O pai buscou uma faca na cozinha. Cravou no dorso do asceta mutante. Um grito de javali selvagem reverberou pela garganta. O eremita pulou a janela e correu com a faca rebrilhando nas costas. Antes de adentrar a floresta foi atingindo por uma bala. Embrenhado na escuridão, o mutante retira a lamina do dorso. A sobrenaturalidade desaparece. Não restou nem cicatrizes nos ferimentos...
O sol já lançava seus raios purificadores nos resquícios de trevas da mata densa. O solitário-Asceta, em seus estado natural, descerrou seus olhos de um pesadelo. Aturdido, levantou do chão enfolhado da selva. Sua memoria da noite anterior tinha sido afetada por amnesia. O sabor forte de carne e sangue subia do estomago. Foi matutando em direção a sua choupa, tentando desvendar a impressão carnívora. O sabor que portava era a antípoda de sua filosofia, de seu modo de vida. Seu raciocínio arrazoava uma explicação lógica. Certamente, havia ingerido alguma erva psicoativa poderosa, fora de sua dieta. Nos dias seguintes a vida do mutante foi se enquadrando no seu ramerrão filosófico-vegan. O sabor carnil foi evacuando de suas entranhas, sendo purificado por ervas e raízes. O Halloween lascivo ficou no passado esquecido, na memoria do sobrenatural...
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