sábado, 23 de dezembro de 2017

UM CONTO DE NATAL - Sem Charles Dickens: "There is no free lunch" Não era tempo de se embriagar com a alma cristã. Sua existência dependia do lucro das vendas anti-convencionais.




Capitulo Um



Levantou da cama improvisada. Colchão de espuma puída em contato direto com o assoalho cupinizado. O amargo da cachaça misturado com a cannabis sativa e migalhas de pão - da madrugada - contaminavam as papilas gustativas. Amanheceu. Pegou o trinta e oito em cima da caixa de mazanas argentinas, que servia de criado mudo. Colocou a máquina entre a calça de brim presa pelo cinto de fivela de metal e a derme.  Jogou o tijolo de maconha na fórmica amarela da velha mesa no centro do barraco. Começou a embalar de forma que o lucro fosse otimizado. Merreca sentado - Parecia ainda menor. A mobília era advinda do lixo. Um metro e meio de altura derivava da subnutrição. A aparência era de um quasímodo invertido. A protuberância do Corcunda de Nortre Dame, brotava no peito. Era o quinto filho de uma mãe solteira. Há muito tempo não a via. Não tinha notícias. As lembranças evocavam os cabelos negros escorridos no rosto sofrido e vincado de todo discriminado.  A mamadeira de água turva misturada com cachaça para mitigar o choro. A casa de chão batido, construída com papelões e madeiras frágeis... Ela saía a noite. Marcava presença nas esquinas das luzes capitalistas, que atraem todas as mães-mariposas-sem-oportunidades, traduzindo, ou melhor, nunca se enquadraria na meritocracia dos neoliberais da sofrida América do Sul, governada pelas elites rentistas e detentoras de cinquenta por cento das riquezas, apesar de representarem um por cento da população. O corpo era o ganha pão... Neste período, Merreca ficava dentro do berço de "ouro" (Uma caixa de papelão que outrora armazenava detergentes - Úmida e mofada) - Um pote de margarina adicionado de açúcar misturado com analgésicos. A luz de velas dava uma certa claridade, projetando alguns objetos deformados nas frágeis madeiras da parede. Nunca conseguiu se libertar da caverna de Platão, ou seja, a favela da miséria. Hodiernamente, tudo é passado. Seus irmãos e sua mãe morreram na memória ou nas exigências da  vida real... 



A existência, o destino já estavam delineados... As ciganas identificariam nas linhas das mãos: Um futuro soturno, apesar de uma ascensão fátua. Os jogos de búzios prognosticaram maus augúrios.  A filosofia existencialista de Jean-Paul Sartre era nula. Na linha abaixo da pobreza não podemos fazer nada melhor do que a sociedade nos fez.  Poderíamos construir algo a mais do que fizeram de nossa vida? - Dificilmente, num país em que  já é marginalizado no vagido. Se não tem berço, se a aparência não for o padrão do status quo, se não pertencer ao estamento do poder. A filosofia das elites brasileiras é a ideologia lombrosiana. A sociologia dos poderosos nos indicam contrários: Meritocracia, mobilidade social, competência, que sempre estão na filosofia da dominação, do senhor, nos boulevards  dos bairros nobres, nos shoppings, nos centros burgueses, porém a pele, a origem nos condenam. A não ser pela exceção, teremos acesso aos altos de uma sociedade castradora, discriminadora e desigual... 




Vinte e um de dezembro: Merreca descendo o morro. Quanto mais perto dos vales - Enxergava as luzes que o atraiam. As casas da classe media iluminadas por dispositivos made in China - Preenchiam seus olhos. As avenidas dos pequenos burgueses todas decoradas, iluminadas... Esse era seu sonho de consumo. Desde a infância, sonhava pertencer a uma família com condições econômicas de bancar suas necessidades. Isto inclui sua deformação corporal a ser superada por alimentação superior. "Invejava" os playboys aos quais fornecia a erva do diabo, os flocos, aos Neves' noses. As  vezes tomava cerveja nos bairros da classe media alta com seu mercado cativo... Na semana que antecede o natal, saem das manchetes do mainstream  as guerras, a miserabilidade humana. O espaço vazio é invadido por propagandas melosas, piegas. Papais-noéis preenchem vitrines, ocupam ruas, alguns são pedófilos disfarçados. Refrigerantes, mídias, corporações, famílias se unem em torno do espirito cristão. Com efeito, estamos sob influência do deus mercado. O capitalismo constrói a alma natalina. Consuma e será feliz...



Não era tempo de se embriagar com a alma cristã. Sua existência dependia do lucro das vendas anti-convencionais. Merreca se descuidou. Sua contabilidade estava no vermelho contra o patrão. Sua vida era um exemplo do velho jargão, que alguém disse algum dia, talvez, Tim Maia: "Este país não pode dar certo. Aqui prostituta se apaixona, cafetão tem ciúme, traficante se vicia e pobre é de direita...



Vinte e dois de dezembro: Merreca começou a percorrer os points onde mantinha business. Havia necessidade de superar todas as metas atingidas. O vermelho do débito não colocado no azul, significava a cor do sangue do ajuste de contas. Contabilidade gerencial do tráfico... Garrafa de cachaça na mesa. O copo americano padrão dos butecos da favela. A cajembrina, gíria para designar mix de água-ardente  e abacaxi. Um cigarro de maconha entre os dedos deformados faziam a configuração. Merreca passou o baurete para seus possíveis clientes. Showroom... 



Continua...

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